História de quinze dias
Em julho de 1876, exatamente há 146 anos, Machado de Assis iniciava uma nova série de crônicas quinzenais na revista Ilustração Brasileira, para a qual deu o título de “História de quinze dias”. Como de costume entre os cronistas do período, não punha seu próprio nome em tais escritos, preferindo assiná-los como Manasses. Em meio às incertezas que marcavam aquela década, na qual começavam a evidenciar as fissuras de uma organização social baseada nas relações de dependência e na escravidão, Machado tratava, naqueles escritos, de oferecer ao público uma leitura do tempo, organizados na história proposta por sua narrativa quinzenal.
“Achei um homem; vou apagar a lanterna, tal qual Diógenes. E quando digo que o achei, digo pouco, todos nós o achamos, não dei com ele sozinho, mas todos, a cidade em peso, se é que a cidade em peso não tem coisa mais séria em que cuidar, (os touros, por exemplo, o voltarete, o cosmorama) o que de todo não é impossível.
E quando digo que o achei, erro; porque não o achei, não o vi, não o conheço, achei-o sem achar. Parece um enigma e é decerto enigma, mas dos que eu quisera ver-te fazer, leitor, se tens queda por tais ocupações.
Suponho no leitor uma alta dose de penetração, não me canso em explicar-lhe que o homem de que se trata é o incógnito benfeitor das órfãs da Santa Casa, o que deu 20:000$000, sem dar o seu nome.
Sem dar o seu nome! Este simples fato conquista a nossa admiração. Não que ela esteja acima das forças humanas, é essa justamente a condição da caridade evangélica, em nome da qual os filhos do Evangelho inventaram a caridade nas gazetilhas.
Mas, na realidade, o caso é raro. Vinte contos dados assim, com simplicidade, sem uma notícia nas folhas públicas, sem duas barretadas, sem uma ode, sem nada; vinte contos que caem da algibeira do benfeitor para as mãos dos beneficiados, sem passar pelos prelos, os bentos prelos, os adoráveis prelos, que tudo contam, até as ações mais recônditas? A ação é cristã; mas é tão rara, como as pérolas.
Por isso digo: achei um homem. O anônimo da Santa Casa é o homem do Evangelho. Imagino-o com dois traços principais: o espírito de caridade, que deve ser e é anônimo, e um certo desdém para com os clarins da Fama, os rufos de tambor, os pífanos da publicidade. Pois bem, esses dois traços característicos são duas forças. Quem as tem possui já de si uma grande riqueza. E saiba agora o leitor que o ato do benfeitor da Santa Casa inspirou a um amigo meu um ato bonito.
Tinha ele uma escrava de 65 anos, que já lhe havia dado a ganhar sete ou oito vezes o custo. Fez anos e lembrou-se de libertar a escrava… de graça. De graça! Já isto é gentil. Ora, como só a mão direita soube do caso (a esquerda ignorou-o), travou da pena, molhou-a no tinteiro e escreveu uma notícia singela para os jornais indicando o fato, o nome da preta, o seu nome, o motivo do benefício, e este único comentário: ‘Ações desta merecem todo o louvor das almas bem formadas.’
Coisas da mão direita! Vai senão quando, o Jornal do Comércio dá notícia do ato anônimo da Santa Casa da Misericórdia, de que foi único confidente o seu ilustre provedor. O meu amigo recuou; não mandou a notícia às gazetas. Somente, a cada conhecido que encontra acha ocasião de dizer que já não tem a Clarimunda.
— Morreu? — Oh! Não! — Libertaste-a? — Falemos de outra coisa, interrompe ele vivamente, vais hoje ao teatro? Exigir mais seria cruel.”