O MÓVEL VELHO NO CANTO DA SALA

Publicado em 15/11/2025 00:11

Solange das Flores Nascimento (Sol Flores) – Psicóloga psicanalista, atriz e diretora profissional e pós graduada em metodologia do ensino

Um dia a gente percebe que virou lembrança. Não tem barulho, nem aviso, só o silêncio de quem não é mais chamado. As conversas passam por cima, as risadas não esperam, e o tempo, esse artesão cruel, vai lixando a presença até sobrar só um vestígio.
Envelhecer é ver o mundo continuar sem pedir licença. É assistir à pressa dos que não olham pra trás. É saber que o que se aprendeu, com suor e vida, não interessa mais a ninguém.
Antigamente, os velhos eram os guardiões do tempo. Cada ruga era uma linha de sabedoria. Cada história, um mapa. Hoje, são tratados como móveis velhos, úteis um dia, incômodos agora. Ficam ali, num canto da sala da existência, com uma perna quebrada e o pó dos dias acumulando em cima.
E, mesmo assim, há um brilho nos olhos deles. Um brilho que vem de quem já viu o amor nascer e morrer mil vezes. De quem já chorou por tudo e aprendeu a rir mesmo assim. De quem sabe que viver não é vencer, é permanecer um pouco mais.
Mas ninguém quer ouvir. O mundo perdeu o hábito de escutar. Querem tudo novo, rápido, brilhante. Não há tempo pra histórias que demoram, nem paciência pra pausas que ensinam. Os anciões se tornam invisíveis, e com eles desaparece um pedaço da humanidade.
Porque quando a sabedoria é ignorada, o erro recomeça. E quando o velho é descartado, o futuro fica órfão.
O velho sentado na calçada, o olhar distante, é o espelho do que todos seremos. E se hoje não o respeitamos, amanhã não haverá respeito pra nós.
O corpo pode enfraquecer, mas a alma envelhece de outro jeito, ela amadurece, floresce, se torna raiz. Mas o mundo, cego pela pressa, pisa nessas raízes sem perceber que é nelas que está sustentado.
Um dia, quando o barulho acabar, talvez alguém perceba. Talvez alguém sinta falta daquela voz calma, daquela história contada devagar, daquela presença que parecia pequena, mas segurava o mundo inteiro em silêncio.
O móvel velho continua ali, no canto. Empoeirado, esquecido, mas ainda firme, ainda de pé, ainda guardando a memória de tudo o que o mundo foi, e de tudo o que, sem ele, deixará de ser.

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