As cores da Justiça
Havia um menino.
Dentro desse menino, havia um sonho.
Gostava de brincar, assim como os outros de sua idade, porém, algo o tornava diferente dos demais: sua grande inteligência.
Ele era amigo dos livros. Ele desenhava em sua mente, com o lápis da imaginação, o belo futuro que pretendia colorir com o tempo.
Aos quatro anos de idade ingressou nos estudos.
Por estar adiantado, o menino foi obrigado esperar dois anos na pré-escola até ter a idade certa para entrar na primeira série.
Quando nela chegou, eis a surpresa: sua mãe foi chamada às pressas pela professora.
Acontece que não era para repassar a bronca por alguma travessura que o mesmo cometera, e sim para dizer a sua responsável que, devido ao nível de aprendizado do seu filho, ele teria que ser matriculado já na segunda série.
Sendo assim, o menino seguiu colorindo seu futuro brilhante.
Depois de se tornar garoto e passar pela fase adolescente, o jovem resolveu então fazer a escolha que adicionaria ainda mais cores a sua paleta de possibilidades: estudaria para ser um Engenheiro Agrícola.
Inscreveu-se para o vestibular da Unipampa e Instituto Federal Farroupilha, e, sem muitas dificuldades, foi aprovado.
Avançou firme na caminhada rumo ao seu sonho, que ele pretendia que um dia se tornasse tão grande a ponto de resvalar também na vida de sua família.
Família essa que teve que deixar na pequena cidade de Manoel Viana, no interior do Rio Grande do Sul, para estudar na vizinha Alegrete, que ele esperava que lhe trouxesse tanta alegria quanto tinha no nome.
Como sabia aonde queria chegar, não havia nada que o pudesse distrair do caminho.
Por isso, a grande distância entre a casa do jovem e o campus da faculdade, que ficava fora da cidade, nunca foi um obstáculo para ele.
Enquanto muitos iam para a aula tranquilos dentro de seus carros, o jovem seguia a pé por todo o caminho para economizar no ônibus e diminuir os gastos de seus pais.
Como fruto de sua dedicação, foi escolhido pelos próprios colegas de classe para receber uma bolsa de estudos da instituição de ensino.
Desenvolvia projetos. Viajava até Pelotas para realizar análises de terra. Ia para Bagé ministrar palestras para seus professores.
Apesar do grande esforço exigido o jovem nunca desanimava, e quando alguém lhe perguntava como conseguia cursar a difícil graduação de Engenharia e ainda desenvolver tantas atividades extras, respondia com simplicidade: “eu tenho um sonho, e luto por ele”.
Determinado, simples e alegre.
Assim era o jovem. Assim era Cássio Garcez Biscaino, mais uma das centenas de vítimas do trágico incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul.
Cássio, que desde menino emanava as cores da imaginação, não suportou toda a escuridão que tomou conta daquele lugar.
Seu irmão mais velho, Renan, foi retirado da boate em tempo, e, após ficar quase duas semanas no CTI da Santa Casa de Santa Maria, sobreviveu. Apesar de ainda passar por tratamento no Hospital Universitário de Santa Maria a cada seis meses, a maior dor que sente é a da saudade.
Sua mãe, Rosmeri, compartilha da mesma dor.
Compartilha também a revolta de muitos pais, irmãos, amigos e conhecidos das vítimas do incêndio.
Revolta essa que, na verdade, acomete a todos os filhos de nossa nação.
Esse terrível acontecimento da madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 não pode cair no esquecimento, e a responsabilização dos envolvidos deve ser um marco histórico da efetivação da justiça em nosso país.
A edição especial da revista Veja sobre a tragédia trouxe em sua capa a frase que resume bem o apelo que preencheu a todos os brasileiros após o ocorrido.
“NUNCA MAIS. Que em memória dos 235 (242, ao final) jovens mortos de Santa Maria façamos um Brasil novo, onde ninguém mais seja vítima do descaso, da negligência, da corrupção de valores e da impunidade”.
Não vamos deixar que a escuridão que se abateu sobre aquela boate nos tape a vista e sufoque a memória.
Vamos nos lembrar da paleta de cores de Cássio.
Vamos desenhar o caminho da justiça!