Responsabilidade do Estado VS Tragédia da Boate Kiss: pau que bate em Chico, bate em Francisco?
No início dessa semana me deparei com a seguinte notícia: a prefeitura de Lençóis Paulista (SP) foi condenada a indenizar, a título de danos morais, uma criança que sofreu queimaduras em uma creche do município, ao encostar as mãos num forno. A decisão, da 6ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, fixou pagamento em R$ 10 mil (dez mil reais).
Como atuante (e amante) das áreas do Direito Público, especialmente do Direito Administrativo, após uma sumária análise do ocorrido, achei normal tal condenação.
Afinal, a nossa Constituição Federal adota a responsabilidade civil objetiva do Estado pelos danos causados às pessoas e seu patrimônio por ação ou omissão dos seus agentes. Ou seja, para promover uma condenação em caso dessa natureza, basta a comprovação do nexo de causalidade entre o dano sofrido e a ação ou omissão das autoridades responsáveis, dispensando-se, assim, prova da culpa do agente público para que a pessoa lesada tenha direito à indenização, bem como para que os agentes envolvidos sejam devidamente responsabilizados.
Entendendo isso, o restante é de simples constatação, de modo que, certamente, com este norte, até mesmo um leigo é capaz de ter uma boa noção de como o Estado responde pelos danos que causa por agir ou não agir de determinada maneira.
Contudo, quando meu pensamento refletia tal constatação, me lembrei de um episódio – que, de tão assustador, talvez devesse realmente fazer parte de algum filme de terror – em que aquilo que era simples se mostrou complexo, retirando a capacidade do leigo, e até mesmo do “letrado” ou especialista, em entender o âmbito real da responsabilização estatal: o incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul.
Recordei-me que em março deste ano o Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, mais uma vez, opinou pelo arquivamento do inquérito civil que apurava a responsabilidade administrativa do prefeito, secretários municipais e servidores de Santa Maria; todos, de alguma forma, ligados a supostos atos comissivos ou omissivos que teriam contribuído para a ocorrência do incêndio da casa noturna, que funcionava sem cumprir exigências legais, principalmente em relação a licenças de funcionamento (questionáveis) e obras necessárias para garantir a segurança dos clientes.
O trecho “mais uma vez” da frase acima se faz necessário pois esse foi o segundo pedido de arquivamento feito pelo MP, que assim já havia decidido em setembro de 2013. Somente após solicitação do Conselho Superior do Ministério Público, em outubro daquele ano, o inquérito foi reaberto para nova análise. Agora, o mesmo Conselho deverá decidir se ratifica ou não o pedido de arquivamento.
No entanto, o que importa aqui é a curiosa situação: ao mesmo tempo que de um lado um pequeno município foi condenado por ser objetivamente responsável (através dos seus agentes) por leves queimaduras de primeiro e segundo grau sofridos por uma criança, do outro entende-se que um ente público, praticamente quatro vezes maior que o primeiro – tendo em vista que a cidade do interior paulista possui cerca de 70 mil habitantes e Santa Maria se aproxima de 276 mil –, especialmente no tocante ao seu “aparato funcional”, ou seja, na sua equipe e instrumentos disponíveis para promoção de serviços públicos, bem como para fiscalização dos mesmos, não possui responsabilidade alguma pela ocorrência de uma tragédia que tirou a vida de 242 pessoas – a maioria jovens e estudantes – e vitimou cerca de 680 outras, algumas em tratamento até os dias atuais.
Para o Ministério Público, não foi possível comprovar o nexo causal entre o que originou o dano (fogo) e as “eventuais falhas administrativas ocorridas” – como está expresso na nota divulgada para justificar o arquivamento.
Tamanha a flagrância da omissão do Poder Público, especificamente dos agentes públicos municipais (lembrando-se, claro, também dos estaduais), bem como dos agentes políticos, se faz desnecessária qualquer espécie de análise jurídica para tentar demonstrar o óbvio: a injustiça!
Aqui, nesse caso, caberia simplesmente a análise simplória aprendida – e exercida – por minha saudosa avó, que há muito já dizia: “pau que bate em Chico, bate em Francisco”.
Pois é, minha avó, aqui – infelizmente – não bate não.