O Marco Civil não orna
Em 9 de fevereiro de 1967, sob a presidência do Marechal Humberto Castelo Branco, foi promulgada a Lei de Imprensa no Brasil. Com ela o governo podia punir de forma dura os jornalistas e órgãos de imprensa cuja opinião fosse considerada caluniosa, ofensiva, difamatória ou perigosa para a “estabilidade institucional da nação”. E até 2009 a Lei de Imprensa assombrou a liberdade de opinião no Brasil. É certo que desde o fim do regime militar a lei perdeu muito de sua força e passamos a viver um clima de liberdade democrática, mas ela estava lá, como um esqueleto no armário.
Levamos 42 anos para revogar a Lei da Imprensa. Agora cada caso é tratado com decisões judiciais fundamentadas na Constituição Federal e num Código Civil que defende cada brasileiro contra discriminação, pedofilia, invasão de privacidade, ofensas à honra, calúnia, injúria, difamação e mais uma infinidade de ameaças a nossos direitos humanos e de cidadãos.
O Supremo Tribunal Federal concluiu que não é necessária uma lei para punir os crimes da imprensa, basta seguir o Código Civil.
E então surge o tal Marco Civil da Internet, lançado coincidentemente em 2009, mesmo ano em que a Lei de Imprensa foi revogada pelo STF. E vem “para regulamentar a Internet no Brasil, prevenindo que indivíduos sejam vigiados sem mandado, que dados possam ser guardados de forma a prejudicar a privacidade dos usuários e garantindo a neutralidade da rede por meio da previsão de princípios, garantias, direitos e deveres de quem usa a rede, e da determinação de diretrizes para a atuação do Estado através do poder judiciário, como controlador de conteúdo da rede e de seus usuários.”
Como a maioria das leis que quer nosso bem, a intenção parece ser a melhor possível. Mas “regular e controlar” e “internet” na mesma frase, como dizíamos lá em Bauru, não orna…
Consigo ver dois tipos de gente por trás da ideia desse Marco Civil: primeiro os que verdadeiramente estão preocupados em garantir a liberdade da internet. E depois os dissimulados que, por questões econômicas, políticas ou ideológicas, estão incomodados com a tal liberdade e querem criar algum tipo de controle. Os dois estão juntos no atacado, ao recorrer ao Estado para criar novas regras e leis, mas divergem no varejo, ao querer que essas leis atendam a seus objetivos específicos. Mas ambos querem o mesmo: mais controle. Como se uma nova lei fizesse com que as leis que hoje não são cumpridas, passem a sê-lo.
Mas mais controle pra que? Já temos dezenas, centenas, milhares de leis que podem ser facilmente aperfeiçoadas, incorporando novidades trazidas tanto pela tecnologia quanto pelos progressos ou retrocessos morais da sociedade. Fazer com que as leis que já existem sejam cumpridas é que garantirá a liberdade, neutralidade e privacidade que tanto desejamos. Liberdade não admite grilhões. Não admite controles. E não me lembro de ter visto nada mais livre, libertário, até mesmo anarquista, do que a internet nos moldes em que ela existe hoje. E é por conta dessa liberdade que surgem as ameaças.
O Marco Civil brasileiro, pela maioria das discussões que tenho visto, parece mais uma ferramenta de combate ao capital que qualquer outra coisa. Deixou de ser uma discussão técnica para ser ideológica, como tudo que se tem feito no Brasil pós-Lula. E no Brasil, quando a discussão é ideológica – já escrevi isso e repito – lidamos com questões de fé. Lembra do Drummond? “A fé dispensa o raciocínio”? Pois é.
O melhor Marco Civil da Internet é o Não-Marco Civil.
É o controle fundamentado “na Constituição Federal e num Código Civil que defende cada brasileiro contra pedofilia, invasão de privacidade, discriminação, ofensas à honra e contra calúnia, injúria, difamação e mais uma infinidade de ameaças a nossos direitos como seres humanos e cidadãos.”
É criar vergonha na cara e exigir que as leis sejam cumpridas.
É afastar a mão peluda do Estado, desregulamentando o mercado para que surjam mais competidores e botando na cadeia quem praticar abusos como cartéis, pressão econômica ou corrupção.
É não consumir de quem presta maus serviços.
Mas parece que tudo isso é um sonho.
O Marco Civil vem aí. Se for aprovado, tomara que não levemos 42 anos para revogá-lo.